Regramento transitório das relações jurídicas privadas durante a pandemia

Direito em Condomínio

Por Daniela Ferretto Caetano, OAB/DF 32.879

Em 12/06/2020 foi publicada no Diário Oficial da União[1] a Lei 14.010/2020[2], que institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19).

A lei entrou em vigor no dia de sua publicação, fixando a data de 20/03/2020 como termo inicial dos eventos derivados da pandemia, e trouxe algumas questões pontuais quanto aos prazos prescricionais, decadenciais e de usucapião; assembleias de condomínios edilícios e de pessoas jurídicas de direito privado; execução e revisão de contratos civis; suspensão do direito de arrependimento do consumidor; e vedação de concessão de liminar nas ações judiciais de despejo. Especificamente quanto às reuniões e assembleias de pessoas jurídicas de direito privado, execução e revisão de contratos civis e vedação de concessão de liminar nas ações judiciais de despejo, vetadas pelo Presidente da República, restaram promulgadas pelo Congresso Nacional, após a derrubada dos vetos, na edição extra do Diário Oficial da União de 08/09/2020[3]. Os temas expostos serão objeto de análise do presente artigo, que tem o intuito meramente informativo e não exaustivo. Boa leitura!

A primeira parte do regramento legal dispõe a respeito dos prazos prescricionais e decadenciais, que regulam, por exemplo, o prazo para o ajuizamento de uma demanda judicial indenizatória, ou o prazo para resilir unilateralmente um contrato. De acordo com a norma, esses prazos ficam impedidos ou suspensos, a depender do caso em concreto, desde 12/06/2020 até 30/10/2020. Sendo que esse impedimento ou suspensão não se aplica enquanto durarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional (Lei 10.406/2002[4] – Código Civil, artigos 197 a 204).

Da mesma forma, ficam também suspensos os prazos de aquisição de propriedade, de bem móvel ou imóvel, nas diversas espécies de usucapião (Código Civil, artigos 1.238 a 1.244 e 1.260 a 1.262), no período compreendido entre 12/06/2020 a 30/10/2020. Ou seja, no referido período, ainda que o usucapiente (quem irá adquirir a propriedade) esteja na posse do bem, não contará para fins de aquisição da propriedade.

No caso dos condomínios edilícios, a norma menciona que a assembleia condominial e a respectiva votação poderão ocorrer por meios virtuais, até 30/10/2020, ainda que a Convenção ou Regimento Interno não disponham a respeito, observadas as restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais e as determinações sanitárias das autoridades locais. Não há previsão ou exigência que haja, previamente à assembleia, o treinamento dos condôminos para uso do ambiente virtual e segurança daquela[5]. E, no caso de não ser possível a realização de assembleia, mesmo virtual, os mandatos de síndico vencidos a partir de 20/03/2020 ficam prorrogados até 30/10/2020, sem, contudo, existir direito subjetivo dos atuais ocupantes dilatarem seus mandatos até a referida data[6]. Não obstante a impossibilidade de realização de assembleia, é obrigatória a regular prestação de contas dos atos de administração por parte do síndico, sob pena de destituição.

No tocante às as associações, as sociedades e as fundações, também deverão observar as restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais, até 30/10/2020, e as determinações sanitárias das autoridades locais. Podendo, todavia, ser realizada a assembleia por meios eletrônicos, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica. Sendo possível a manifestação por qualquer meio eletrônico indicado pelo administrador, que assegure a identificação do participante e a segurança do voto, produzindo todos os efeitos legais de uma assinatura presencial. 

Nesse mesmo sentido o Conselho Nacional de Justiça – CNJ baixou a Recomendação nº 63[7], onde sugere aos juízos de ações de recuperação e falência que suspendam as Assembleias Gerais de Credores presenciais, e autorizem a sua realização por meio virtual, mediante providências dos administradores judiciais. Sendo que, nos exatos termos da decisão no processo nº 07251930920208070000[8], “a mera dificuldade de acesso a ferramentas eletrônicas ostensivamente disponibilizadas não pode ser um problema intransponível que impeça, em qualquer hipótese, o uso de plataforma virtual para a realização da Assembleia, quando recomendada. (…) Assim, para viabilizar a AGC virtual, a administradora judicial terá um papel importante que é o de conseguir ferramentas que permitam a manifestação dos credores e a votação à distância.”. Caso este referente a uma caso em concreto de uma sociedade empresarial e passível de aplicação de maneira análoga a associações e fundações.

Em relação aos contratos do âmbito civil, dispõe a legislação que as consequências decorrentes da pandemia e sua execução, incluídas as decorrentes de caso fortuito e força maior (fatos cujos efeitos não era possível evitar ou impedir), não terão efeitos jurídicos retroativos. Ou seja, o regramento previsto se atém ao descumprimento das obrigações contratuais decorrentes da situação pandêmica. Assim, eventual inadimplemento de uma obrigação ocorrido anteriormente ao período da pandemia seguirá as regras ordinárias do não cumprimento das obrigações[9]. Em um caso concreto[10], a magistrada entendeu que pelo fato de ter a sentença transitado em julgado em data anterior à decretação da situação pandêmica (20/03/2020), a ocorrência da pandemia não é motivo suficiente para caracterizar fato fortuito ou motivo de força maior passível de suspender a execução do débito. Há, todavia, quem entenda que se houver agravamento dos efeitos decorrentes do inadimplemento ocorrido antes da situação pandêmica, e que se intensificou posteriormente a ela, poderá o devedor invocar o caso fortuito ou a força maior para se isentar das consequências posteriores ao surgimento da crise, ou seja, a partir de então e sem retroação de seus efeitos[11].

Ainda quanto às relações do âmbito civil, a lei prevê que não se considera fato imprevisível o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário, para os fins exclusivos dos arts. 317 (desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução), 478 (a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa), 479 (modificação equitativa das condições do contrato) e 480 (redução da prestação, ou alteração de sua execução a fim de evitar a onerosidade excessiva) dispostas no Código Civil. Tratamento esse que se difere quando se trata de relações de consumo e de inquilinato, onde poderá haver revisão contratual em razão do aumento da inflação, da variação cambial, da desvalorização ou da substituição do padrão monetário, pois entendidos esses como fatos imprevisíveis nos casos em comento.

Acerca das relações de consumo (Lei 8.078/1990[12] – Código de Defesa do Consumidor), a regra é de suspensão do direito de arrependimento do consumidor, até 30/10/2020, na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos. Em outras palavras, o consumidor não pode desistir do contrato, nas hipóteses descritas, após a sua assinatura ou do recebimento do produto ou serviço, adquiridos fora do estabelecimento comercial, por telefone ou a domicílio.

Por fim, no tocante às relações locatícias, previstas na Lei 8.245/1991[13], a norma dispõe que não se concederá liminar, até 30/10/2020, nas ações de despejo para desocupação de imóvel urbano, ajuizadas a partir de 20/03/2020[14], nos casos de: (i) descumprimento do mútuo acordo, no qual tenha sido ajustado o prazo mínimo de seis meses para desocupação, contado da assinatura do instrumento; (ii) extinção do contrato de trabalho, se a ocupação do imóvel se relacionada com o seu emprego, e há prova escrita da rescisão do contrato ou reste demonstrada aquela em audiência prévia; (iii) permanência do sublocatário no imóvel, mesmo após a extinção da locação celebrada com o locatário; (iv) término do prazo de 30 dias da notificação para o locatário apresentar nova garantia locatícia; (v) término do prazo da locação não residencial, tendo sido proposta a ação em até 30 dias do fim do contrato da notificação comunicando o intento de retomada; e (vi) falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias (caução, fiança, seguro fiança e cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento).

De outro modo, é possível a concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nos casos de: (i) término do prazo da locação por temporada, cuja ação tenha sido proposta em até trinta dias após o vencimento do contrato; (ii) morte do locatário sem deixar sucessor legítimo na locação; (iii) havendo a necessidade de se produzir reparações urgentes no imóvel, determinadas pelo poder público, que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário, ou, podendo, ele se recuse a consenti-las. Da mesma forma, não há impedimento de concessão de ordem de despejo no caso de o contrato se tratar de arrendamento de espaço comercial[15], ou de cumprimento de sentença de reintegração de posse de imóvel litigioso[16].

Vistos os temas trazidos, reforço a informação de que as determinações legais acima delineadas possuem caráter transitório e emergencial, sendo aplicáveis até 30/10/2020. Salvo publicação de nova lei que prorrogue a sua aplicação para período posterior à referida data, o que, pelo jeito que a situação tem se desenvolvido, é bem provável que aconteça.

Espero que as informações tenham sidos úteis. Até uma próxima!

Daniela Ferretto Caetano | Advogada | OAB/DF 32.879 | E-mail: danielacaetanoadv@gmail.com | 61-98165 9785


[1] https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-14.010-de-10-de-junho-de-2020-261279456

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14010.htm

[3] https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-14.010-de-10-de-junho-de-2020-276227424

[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm

[5] Processo: 07369336120208070000, Data: 01/09/2020, Órgão: 4ª Turma Cível, Magistrado: LUÍS GUSTAVO B. DE OLIVEIRA, TJDFT.

[6] Processo: 07397665220208070000, Data: 15/09/2020, Órgão: 6ªTurma Cível, Magistrado: VERA ANDRIGHI, TJDFT.

[7] https://atos.cnj.jus.br/files/original220958202003315e83bfb650979.pdf

[8] Processo: 07251930920208070000, Data: 06/08/2020, Órgão: 7ª Turma Cível, Magistrado: FÁBIO EDUARDO MARQUES, TJDFT.

[9]  https://www.conjur.com.br/2020-mai-08/direito-civil-atual-relacoes-juridicas-contratuais-regime-emergencial-parte

[10] Processo: 07220744020208070000, Data: 17/07/2020, Órgão: 5ª Turma Cível, Magistrado: MARIA IVATÔNIA, TJDFT.

[11] https://www.conjur.com.br/2020-mai-08/direito-civil-atual-relacoes-juridicas-contratuais-regime-emergencial-parte

[12] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm

[13] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm

[14] Processo: 07154870220208070000, Data: 12/08/2020, Órgão: 4ª Turma Cível, Magistrado: JAMES EDUARDO OLIVEIRA, TJDFT.

[15] Processo: 07377079120208070000 Data: 09/09/2020 Órgão: 6ª Turma Cível Magistrado: ALFEU MACHADO, TJDFT.

[16] Processo: 07400107820208070000, Data: 18/09/2020, Órgão: 2ª Turma Cível, Magistrado: SANDOVAL OLIVEIRA, TJDFT.