“Não esperar senão duas coisas do Estado: Liberdade e segurança, e ter bem claro que não se poderia pedir mais uma terceira coisa, sob o risco de perder as outras duas. ” Frédéric Bastiat
Entre festejos e alegrias, os brasileiros começaram 2017, ainda nem bem curadas as ressacas, com violentíssimas rebeliões em presídios de Manaus, Natal e Palmas.
Cenas de indescritível violência, com presos degolados e mutilados, as quais nem vale a pena rever, ganharam as redes sociais confirmando o saldo de mais de uma centena de mortos, dezenas de feridos e fugas de perigosos detentos. Além de aterrorizar o Brasil, gerou crise política entre poderes da República e acrescentou mais uma mancha à imagem do país no exterior.
Rebeliões em presídios são fatos comuns desde os anos 1990, aumentando na última década, cada vez com mais organização e violência. Pelo menos quatro presos são mortos por dia, entre aqueles recolhidos aos 1478 estabelecimentos prisionais brasileiros.
São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Natal, Porto Velho e outras cidades têm sofrido ondas de violência urbana de duração prolongada, decididas por chefes de facções a partir dos presídios onde se encontram segregados, em tese sob Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), e em segurança máxima, os líderes dessas facções.
No rescaldo da crise, ficou claro que recursos substanciais haviam sido desviados por políticos e administradores das finalidades de manutenção, reforço da segurança e melhorias das condições prisionais dos detentos, gerando algumas das causas para a selvageria.
Todos os eventos acontecidos eram (e são) de fácil previsão e haviam sido mencionados em relatórios policiais e de inteligência dirigidos às autoridades competentes.
Importante salientar que apesar dos muitos discursos proferidos mencionando providências, poucos foram materializados em ações concretas.
Ficou claro à sociedade, diante desses acontecimentos brutais, somados aos que vêm sendo elucidados pela Lava Jato, que o Estado brasileiro está refém de criminosos de colarinho branco e outros usando fétidos uniformes de presidiários, estando ambas as categorias em palácios e casas luxuosas e em imundas cadeias, respectivamente.
Já é público e notório que o comando de cada unidade prisional está nas mãos de pelo menos uma das quase trinta facções criminosas do narcovarejo que dominam, também, áreas socialmente degradadas da maioria das cidades brasileiras. Talvez a exceção à regra esteja nos quatro presídios federais, modelo “supermax”, norte – americano, nos quais estão guardados “personalidades” do narcotráfico.
Em permanente disputa pelo precioso mercado das drogas, bens de consumo para os detentos, inclusive espaço nas celas e galerias, além de prostituição e poder de mando, essas “gangues”, às vezes se associam em interesses comuns, ou mantêm uma “paz armada”, na qual a administração pública é apenas espectadora privilegiada e amedrontada. Nisso ela se junta à sociedade.
Do local onde o preso vai dormir, passando pelo que vai consumir, chegando ao direito de sobreviver, tudo no dia a dia carcerário passa pelos chefes de facções e seus prepostos. O mesmo se sucede nas chamadas comunidades dominadas pelo tráfico. Os agentes prisionais, nem todos nomeados pelo Estado, carentes de suporte desse mesmo Estado, pouco podem fazer para se impor diante do que ocorre.
A sociedade brasileira vivencia um momento particularmente crítico no que se relaciona aos aspectos políticos, econômicos, sociais e, entre estes, os mais graves se referem à segurança pública, sem que as autoridades em todos os níveis e sob qualquer outra clivagem que se queira dar, sejam capazes de apresentar soluções satisfatórias que atendam às dimensões temporais de curto, médio ou longo prazo ou nas escalas estratégica, tática ou operacional nas ruas.
Qualquer noticiário de final de tarde e início de noite nas emissoras de televisão, para um assistente desavisado, parecerá o de um país em guerra civil. Os mais de 60 mil mortos anuais vítimas de violência, cerca de 90 % dos casos de alguma forma relacionadas ao narcotráfico e crimes conexos, têm tido diminutos índices de solução pelas polícias estaduais, não conseguindo levar aos tribunais autores de graves delitos.
Brasília, a duras penas, tem estado acima das médias nacionais, com relativo grau de insegurança no Plano Piloto, situação que se agrava nas cidades-satélites e no entorno, em municípios lindeiros de Goiás ou Minas Gerais.
O país detém a quarta maior população carcerária do mundo. Esse número poderia ser positivo, caso significasse que estariam sendo retirados de circulação pessoas que pudessem causar mal a outros seres humanos, especialmente mulheres e crianças, e que estes tivessem a recuperação prevista na Lei de Execuções Penais e nos muitos estatutos de direitos humanos.
Mas não acontece nem uma coisa, nem outra. A população carcerária brasileira excede, em mais de 250 mil, o número de vagas existentes. E não é gente presa por pequenas infrações. Isso é um mito bem explorado pela mídia.
Em Brasília, o complexo da Papuda tem superlotação de cerca de 180%.
Além disso, segundo dados do CNJ, mas de 550 mil mandados de prisão estão em aberto no país e que, obviamente, não podem ser cumpridos. Não há onde colocar quem for detido.
Diante desse quadro, para lá de crítico, por mais que as polícias atuem, não há como manter presos os cidadãos conduzidos às audiências de custódia. Exceto crimes gravíssimos e de grande repercussão, o normal é o meliante sair antes do policial militar nas delegacias ou um ou dois dias depois de apanhado.
Mas os sintomas da precariedade do sistema de segurança pública não vêm apenas das penitenciárias ou cadeias públicas.
Diariamente os noticiários mostram crimes bárbaros e cenas de muita violência no cotidiano dos cidadãos que trabalham, enfrentam as crises política, econômica e social de forma que beiram ao estoicismo.
Policiais civis e militares fazem o possível diante da falta de recursos operacionais e tecnológicos, de apoio institucional e de mídia e de políticas de segurança pública que funcionem e não sejam sonhos utópicos sem respaldo na realidade. Em geral são vítimas de decisões político – partidárias dos governadores e de manobras de sindicatos classistas.
Não existe unanimidade ou conclusões simplórias a respeito do porquê as pessoas cometem crimes. A criminologia não pacificou o assunto. Podem ser alinhadas causas pessoais, econômicas e sociais, de maneira ampla. Assim, sonhos não resolvem ou poupam vítimas.
Nas últimas décadas, várias teses a respeito da aplicação dos policiamentos ostensivo[A1] preventivo e repressivo, associados a pretensas políticas de ressocialização de detidos objetivando a reinserção na sociedade com resgate da cidadania, foram desenvolvidas, sem que se chegasse a algo com expressivos resultados positivos, exceto pontualmente.
A sociedade brasileira, por intermédio de seus segmentos organizados, não decidiu, clara e objetivamente, uma das opções, ou uma terceira via, entre a ressocialização ou segregação das pessoas consideradas de risco ao convívio social.
Os debates, por vezes, têm provocado acaloradas discussões[A2] . Ativistas de direitos humanos advogam que o criminoso é produto do meio onde nasceu e foi criado. Assim, a sociedade deve tratá-lo e não segregá-lo. Por outro lado, morrem ou são feridas vítimas dos egressos das prisões ou por aqueles que ainda não foram colocados nelas. O índice de reincidência criminal no país beira os 80%.
Andando por Brasília, qualquer observador atento vai encontrar guardadores/lavadores de automóveis e outros “empreendedores das ruas”, facilmente identificáveis como egressos do sistema prisional. Uma aproximação cuidadosa obterá deles essa confirmação. De maneira geral, estão em regime aberto, semiaberto (nas não se recolhem à noite para os abrigos previstos em lei) ou, pior, são fugitivos. Quando acontecem os “saidões”, nos grandes feriados, essa massa aumenta. Somente em uma quadra das mais movimentadas da Asa Norte passam de uma dezena. Nos “saidões”, chegam a quase vinte.
Ali, vendem drogas, em geral o crack, pernoitam, praticam furtos de oportunidade, fazem sexo, arrombam o comércio, pedem esmolas e roubam (assaltam) pessoas nas proximidades e se homiziam naquela área. Claro, restringem a liberdade e a segurança dos cidadãos que transitam, sem serem incomodados pelas autoridades.
Concorrentemente a todo esse quadro, ganha espaço na mídia nacional a campanha de legalização da maconha, ou marijuana para os hispânicos. No Uruguai, vizinho na fronteira Sul, e em alguns estados norte-americanos, nestes à revelia da legislação federal, e que deve levar o debate à Suprema Corte norte-americana, o uso da droga vem sendo liberado.
A legalização da maconha deve ser vista como o primeiro passo de uma escalada da liberação de substâncias mais pesadas (cocaína, principalmente), com graves consequências para o já caótico quadro de insegurança pública.
Não se trata de argumentar se os viciados estão vencendo o debate ou se as decisões políticas, adotadas nos exemplos mencionados estão corretas. Cabe refletir sobre os impactos naquilo que é mais caro ao cidadão: sua vida e de seus entes próximos, o direito à liberdade e à segurança, dever do Estado.
O narcotráfico é um vetor de danos transnacional, uma das modalidades de atividade ilícita executada por entidades abstratas denominadas “crime organizado”, administrado por organizações criminosas de tipo mafioso ou não, de modelo empresarial, que movimenta ilegalmente bilhões de dólares / ano (1 a 5 % do PIB mundial) e impõe condições de operação política para estados, organizações e indivíduos.
No momento em que este texto está sendo elaborado, o Rio de Janeiro vivencia mais de 15 tiroteios por dia, entre policiais e traficantes ou entre traficantes de facções rivais. Neles são utilizados fuzis de assalto, de calibre restrito, a maioria nem mesmo usada pelas Forças Armadas ou policiais do país.
Em fevereiro, tropas do Exército e Fuzileiros Navais ocuparam o Espírito Santo, especialmente Vitória, diante da onda de criminalidade e de violência que tomou conta do Estado por duas semanas, quando a Polícia Militar entrou em greve. Outros estados já haviam tido ocupações semelhantes como o Rio Grande do Norte e Alagoas.
As Forças Armadas são o último argumento dos governantes. Se não derem conta, a barbárie terá lugar.
A existência de um poder paralelo ditado pelo crime organizado é real em alguns países. No Brasil o fato vem ganhando dimensão grave nos últimos anos, especialmente em algumas unidades da federação nos quais regras contrárias à lei são difundidas e aplicadas à sombra do poder político que não consegue cumprir seu dever constitucional de promover a segurança pública.
Os problemas sociais não são causas exclusivas que justificam essa dimensão criminal, e não devem ser justificativa única para qualquer decisão a respeito da legalização de entorpecentes, como vem sendo apresentado, mas tem sua contribuição, juntamente com a ineficiência das leis que tratam do assunto e os elevados casos de corrupção de agentes do estado que, responsáveis por combater o crime, nas esferas política, judicial ou policial, acabam por aliar-se a ele.
Á luz desses dados cabe pensar se a legalização das drogas no País não significaria a rendição da sociedade ao poder do crime, como primeira premissa.
Será que os dois policiais militares ao continuarem a disparar em dois traficantes já baleados, em Acari, Rio de Janeiro, no dia 30 de março, cenas fartamente exibidas nas TV e redes sociais não simbolizam a decrepitude da primazia do uso da força pelo Estado de Direito no Brasil?
Desde 2003, a elite que governa o Brasil coloca o desarmamento da sociedade como principal política de segurança pública com o fito de reduzir a violência e a criminalidade. Cria – se aí uma intencional confusão entre causa e efeito. Afinal a arma não é causa da violência, que é inerente ao ser humano, mas um meio usado por criminosos, especialmente aqueles ligados ao narcotráfico, para manter áreas, dominar comunidades, reprimir usuários maus pagadores, proteger–se de rivais e, subsidiariamente, enfrentar as forças da lei. Gastam milhões de reais com a “importação” de instrumentos bélicos “de uso exclusivo das Forças Armadas” como, equivocadamente, os repórteres novatos gostam de falar.
Será que a legalização das drogas eliminaria, como que por encanto, a existência das muitas organizações criminosas do mercado de entorpecentes? Ou reduziria a procura por armas? Ou haveria possibilidade de controle da produção/venda/consumo no varejo de substâncias entorpecentes como imagina ser possível o Uruguai? Talvez no pequeno território uruguaio possa ser possível algum êxito quanto a isso. Mas com as dimensões do território brasileiro, e as extensas fronteiras e as características do povo brasileiro, é quase impossível imaginar isso.
Bem, neste ponto chegamos ao chamado mercado.
Alguém venderia café em um país onde só se tomasse chá?
Esta é a chave da questão: o mercado.
O Brasil tem um mercado em expansão do consumo de drogas, quadro que começou a se definir nos anos 1980 e cuja expansão não é suficientemente conhecida no país, verificando mais seus efeitos (de novo!) em qualquer cidade de médio ou grande porte nas quais já estão firmemente instaladas as “cracolândias” de nefasta ampliação e difícil erradicação.
Isso indica que o foco da questão são o usuário e o mercado que ele estimula.
O usuário, sem qualquer intenção discriminatória ou de julgamento quanto à sanidade ou opção, é a razão de ser de um intricado sistema criminoso organizado que tem origem em países limítrofes ao Brasil nas fronteiras Oeste e Norte. Sem ele o “negócio” das drogas sofreria redução e, aí sim, subsidiariamente, também o das “armas de uso de forças armadas capazes de derrubar helicópteros”. O foco está na prevenção, em evitar que o número de usuários cresça como vem ocorrendo.
Bem, enquanto a sociedade brasileira, em todos os segmentos, não cobrar dos políticos políticas efetivas para a redução da criminalidade e da violência decorrente, lutar para que as polícias sejam prestigiadas, se empenhar por soluções objetivas e claras em relação às drogas, entender que restrições à liberdade dentro de condições humanas de convivência são importantes diante de criminosos estruturados e contumazes , entender que não apenas o meio produz o criminoso, e ter a consciência de que a legítima defesa com os meios adequados é condição primária da sobrevivência, os homens e mulheres de bem estarão pondo em risco a liberdade e a segurança que o Estado deve garantir.
E isso é situação em que veículos e casas blindadas, câmeras de vigilância, cercas, vigilantes e policiais não resolvem.
Marco Antonio dos Santos
Empresário e consultor em Inteligência e segurança